segunda-feira, 19 de abril de 2010

E-mail anônimo

Segue abaixo um email recebido ontem (18/04). Sei quem é a pessoa, mas ela pediu que fosse anônimo, aliás, nem queria que eu publicasse, mas insisti e ela aceitou, portanto, segue abaixo o email e nos comentários uma resposta.

Caro Nando,

Como prometido, estou te enviando um e-mail porque sinto a necessidade de me manifestar sobre seu projeto. Não sei se você vai pôr esse e-mail no blog ou sei lá, mas eu queria apenas uma conversa informal. Antes de qualquer coisa, quero refletir sobre sua famosa pergunta: "isso pode não ser dança?". Acho que para negar o fato de "qualquer" coisa (palavra “isso”) não ser dança, significa que em algum momento convencionamos que "tudo" é dança e eu discordo totalmente. Com a contemporaneidade, acredito que abrimos mais espaço para certas expressões que antes eram exclusas do reconhecimento enquanto arte/dança. Concordo que a arte contemporânea tem o poder de englobar elementos que não tinham significado até então, mas acredito que querer significar tudo/qualquer coisa, não vale a pena.

A dança, por natureza, envolve movimento (ou não), ou o mínimo de consciência sobre o fazer. Para pensar que o que eu fiz hoje de manhã pode não ser dança, eu preciso concordar que a dança engloba/é todas as ações/gestos/pensamentos do meu cotidiano. É realmente engraçado pensar sobre isso tudo, e estou com medo de me contradizer.. Vou ser mais específico, acho que meu “andar na rua” pode ser dança se envolver algumas questões (como proposta, direção, platéia – não necessariamente a convenção estética teatral), mas se eu apenas caminhar sem nenhuma intenção não acho que posso chamar de dança. Eu sempre encontro sua pergunta na tampa do sanitário na Ufba, e volta e meia penso sobre. O ato de urinar também depende do contexto para se chamar de dança.

Acho a proposta super inteligente, mas eu inverteria a ordem das palavras (apesar de que muda um pouco o sentido e fica um tanto clichê): “O que você está fazendo é dança?”. Enfim, podemos discutir mais sobre isso, é só responder =)

Abraço,

XXXX"



REPLY

Olá =]


Amigo, nesses últimos dois dias tive experiências que me fizeram lembrar aspectos do cerne do meu trabalho e realmente queria muito ser sintético na minha fala, mas não conseguirei. [FATO !]

Uma das minhas experiência foi com um texto que já havia lido da Christine Greiner chamado "Arte na universidade para germinar questões e testar procedimentos". Infelizmente emprestei o texto, mas nele havia uma explicação do termo teoria, que nada mais é do que um modo de ver as coisas, ótimo, primeira experiência relatada.

A segunda foi durante uma aula, quando Fernando Passos durante uma conversa disse que identidade não existia, o que existia era a repetição de ações de hábitos. Nas minhas palavras ficaram "Identidade não existe, o que existe são repetição de atos que respaldam alguma imagem ou estereótipo". Um exemplo que ele citou é o fato de que não existem homossexuais (medo de estar pervertendo o exemplo) e sim atos homossexuais, ações que acabam vinculando um tipo de imagem, só que essa imagem não é fixa, ela é mutável e se encontra em constante mudança, por tanto, assim que você define o que é homossexual hoje, você corre um grande risco de ao terminar de escrever sua frase já ser ultrapassado, pra mim (agora do meu ponto de vista, ou melhor, da minha idiossincrasia enquanto artista) ocorre a mesmíssima coisa com dança.

Hoje, qualquer tentativa de se ousar definir o que é, não é, deixa de ser, pode ser e etc. é extremamente perigosa, ainda mais na universidade, ainda mais ainda mais com o advento das teorias dentro da universidade, pra você ver, vou citar um exemplo meu. Possuo um ensaio chamado "Escrever este ensaio pode não ter sido dança?". Nele coloquei um exemplo mas vou adaptar ao seu do andar.

Se você caminha, acredite, há uma intenção nisso e mais, há um trabalho técnico cognitivo que lembra muito o treinamento técnico de qualquer dança baseada em princípios mais de encadeamento de passos ou que existem um apuro técnico de certo tipo de movimento (traduzindo em miudos, balé, graham e cunnigham). O que é diferente é que desde bebê somos adequados a seguir este tipo de treinamento por uma questão de sobrevivência. Balé só fazemos depois de alguns anos de existência no planeta (uns 3 no mínimo). Ou seja, temos um primeiro ponto. Você teve um trabalho do cão pra poder fazer hoje uma atitude que boa parte da população faz, que é por um pé na frente do outro. Massa !

Outro ponto é o que acontece nos seus mapas cerebrais. Mapas cerebrais são maneiras que o cérebro tem de registrar determinadas atitudes humanas, como andar, comer, falar e outras coisas bem comuns. Ele estão se fazendo, se desfazendo e se associando o tempo todo. Agora mesmo, os mapas cerebrais que no decorrer da minha vida eram responsáveis pela coordenação motora fina da mãos, que com o passar dos tempos foi se desdobrando e criando um que me faz digitar no teclado que estou utilizando agora com uma velocidade boa e sem tem que olhar para ele para escrever estão em ação.

Quando eu ando num palco os mapas cerebrais utilizados são exatamente os mesmos que você usa pra andar na rua, ou seja, cognitivamente e aplicando um reducionismo interteórico um tanto perigoso, se o ato motor de andar é validado num palco enquanto dança, porque o meu ato de andar na rua não pode? E mais ! Por que meu ato de andar sozinho na minha casa no escuro não pode? Ou mais ! Se eu me mexo encima de um palco fazendo um adágio de balé é quase senso comum para nós ocidentais cosmopolitas que aquilo é dança, pois tem música, tem ritmo, tem figurino, tem técnica e etc, mas, se eu fizer isso numa sala de ensaio ainda é dança, ou melhor. Se eu fizer isso no meio do deserto do Saara e não contar pra ninguém, isso é dança? Pra mim é, pois arte em geral, focando na dança, é linguagem, comunica, cria símbolos é produtora de conhecimento. Se eu faço algo de dança no escuro do meu lar estou criando mapas corporais para a arte. Do meu ponto de vista, restringir dança á uma certa categoria ou condição (por exemplo, dizer que é necessário um trabalho para algo ser dança)acho extremamente perigoso, assim como dizer que tudo é dança. Nunca ninguém conseguiu me convencer de que algo não era dança usando termos. O mais comum é dizer que para ser dança é necessário haver um trabalho consciente para tal, porra, eu pra chegar nos 21 anos atuais vivo tive que trabalhar MUITO, e muitos do atos foram repletos de consciência, muitos também não foram, mas quem disse que todos os atos de dança do mundo são escolhas conscientes ?

Fiz uma defesa do cão do que eu penso e entendo, mas pra ser sincero, muito do que coloquei eu também não concordo, mas HOJE, na realidade não só acadêmica, mas nas artes conceituais, que a dança tem se apropriado cada vez mais fortemente (e isto é bem forte e visível em Salvador) o fato de eu criar uma argumentação teórica pode validar e desvalidar algo enquanto dança, e se um grupo comprar a idéia, então fudeu (no bom ou no mal sentido) pois isso pode até virar tendência em editais (cof cof).

Ótimo, expliquei a PRIMEIRA PARTE, que era enquanto uma defesa mais teórica punheta-acadêmica-de-artista-conceitual-com-encurtamento-no-joelho. Agora vamos pra uma segunda que é a que mais mexe comigo, apesar de ficar em segundo plano normalmente.

Lembra quando disse que não existem homossexuais, e sim atos homossexuais, pra mim, com a dança é a mesma coisa. A dança não existe, existem atos no mundo que validam o que é dança e o que não é, e estes atos estão em constante mudança e, cada vez mais, numa velocidade absurda ! O que me fez estar aqui hoje respondendo sua pergunta não foi o fato de EU estar validando isto enquanto um ato de dança ou extremamente relacionado a esta, e sim um grupo de pessoas que está respaldando minha ação. Três pessoas de renome na dança (Dulce Aquino, Leonardo Luz e Duto Santana) resolveram selecionar o meu projeto no meio de tantos projetos de INTERVENÇÃO URBANA DE DANÇA. Até aí beleza, mas outras pessoas estão comprando a idéia, ou melhor, compraram, pois aquele adesivo no vaso de dança fez 1 ano faz pouco dias.

Quanto a não existência da dança, foi uma coisa que pensei hoje e já to trazendo pra roda, hehe. Antes (e ainda penso) que a palavra DANÇA, com todos os significados/significantes que ela carrega não tem mais nenhum sentido de e existir. Ela é tão polissemica, tão contraditória e tão mutável e híbrida que não vejo mais lógica de usá-la, uso por vício de linguagem. E mudar a forma como entendemos uma palavra muda nossa forma de lidar/apreender n(o) mundo, afinal, agimos no mundo muito fortemente por palavras, e palavras criam corpos e destroem corpos, destroem danças e constroem danças. Doido esse lugar de autoridade da palavra né? Mais doido ainda é este lugar da academia de dança onde você é obrigado a defender um texto escrito e não algo mais dança. Apesar de alguns programas de mestrado e doutorado estarem permitindo trabalhos coreográficos (se eu for entrar pra discutir meu entendimento de coreografia, não saio daqui hoje, e preciso dormir) eles sempre estão acompanhados de teses e dissertações. Eu muitas vezes não concordo comigo mesmo ao definir que tudo é dança por esse local da academia. As lógicas de raciocínio utilizadas para escrever (dentro dos moldes acadêmicos) são muito diferentes das presentes hoje na dança. (Se formos analisar, a dança dentro da universidade está para o balé russo dentro do contexto do início século XX. Só existe uma forma de grande dança, o resto é resto)

Sinceramente, já larguei gás demais. Quando a escrita começa a ficar confusa devido a polissemia que as palavras vão ganhando é melhor respirar e tentar incorporar. Finalizando, cada um faz uma leitura deste "pode não ser" e "posso não ser" do trabalho. Escolhi eles ao invés do "é" ou "não é" por que seria simplista demais. Ex.: Se dança é balé, e andar não é balé, logo, andar não é dança. Colocando a negativa doida fica. Se dança pode não ser balé, e andar pode não ser balé, logo, andar pode ser dança. Meu intuito é provocar uma reflexão mínima possível, e esse "pode não ser" abre espaço para as possibilidades de dança e para a mutabilidade/polissemia da mesma, tentando furar possíveis defesas que a pessoa tem. Tentar fazê-la perceber o que existe ali (ontologia da coisa) e o como ela existe ali através dos conhecimentos que tenho (epistemologia da bagaça).

Chega, vou ficar doido x.x

P.S.: Acesse http://www.youtube.com/watch?v=dIWIPjRmRiw&feature=related pra ver um adágio de balé)

P.S.: Possuo um ensaio que faz tempo que não mexo chamado "escrever este ensaio pode não ter sido dança?". Se quiser ler, mande-me um email que envio. Não vou torná-lo público aqui por enquanto.

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