domingo, 19 de setembro de 2010

Resposta da Carta - Edu O.

Nossa, fazem 5 meses que a etapa do projeto no quarta que dança acabou e ainda vejo rastros do trabalho em vários ambientes. Na agenda que um amigo tira da mochila, na bolsa de uma amiga que colou por brincadeira e acabou ficando. Em roupas, e etc. Apesar de ver todos esses rastros, assim como um pai que tem por filho favorito o mais rebelde, fico sempre me perguntando sobre as cartas que lancei no mundo? Foram lidas? Quais foram as reações? Dos outros produtos do trabalho eu tive a possibilidade de ver mais reações das pessoas, mas das cartas foi pouco, na verdade mais do que imaginava, mas ainda pouco. A única reação que presenciei quanto a elas foram funcionários dos correios tentando se recusar a mandar elas porque não era suficientemente pobre para tal.

Ontem recebi  resposta de uma carta de um amigo, o Edu O.. Segue abaixo a carta e minha resposta

Nando, querido,

recebi tua carta em Abril e somente agora tenho algo (sem muita importância) a responder. Isso aqui, também, pode não ser uma resposta e você pode nem querer mais saber disso.

No inicio de tua missiva (adoro esta palavra), você diz "Sou dançarino e a algum tempo tenho parado para refletir sobre o que é dança e o que não é e gostaria de compartilhar algumas dúvidas e crises que tenho sobre a dança com um alguém." Confesso que nunca tive muita crise com este assunto, nem pensava se o que eu fazia poderia não ser dança. Agora, depois de mais de dez anos de fazer artístico me pego refletindo sobre o meu fazer dança.

O projeto responsável pela construção do blog, O Corpo Perturbador, é o primeiro que ganhei verba para uma montagem de espetáculo. Será que esta montagem não já estreou tendo em vista todo o burburinho, todas as contribuições, toda participação virtual/real do público aqui neste espaço da rede? Será que não já estou fazendo dança pelo blog mesmo?

Lendo a tua correspondência não sei se me acalmo ou se fico mais em dúvidas.

"Você querido desconhecido algum dia já parou pra refletir sobre a possibilidade de que ler esta carta pode ser dança? Ou sobre a possibilidade de qualquer ato que você fez, deixou de fazer ou fará poder ser dança e você ser um dançarino no mundo?"

Eu acredito piamente que tudo que faço na vida pode ser dança. Me coloco no mundo de maneira bastante política e utilizo meu corpo com este propósito. Quero lembrar que meu corpo é tudo que me representa e me significa: voz, pensamentos, braços, pernas, coluna, careca, ouvidos etc etc etc etc não apenas a casca de pele que me protege e o que fica aparente. Nisso concordo que estamos agindo/fazendo dança. Mas que dança é essa? É o que mesmo isso tudo que estamos discutindo?

Quem valida o trabalho como dança? E mais uma vez pergunto: que dança? A quem se destina?

Acabei de sair do Encontro de Dança Inclusiva. O que é isso? e lá alguns teimaram em categorizar essa dança que usa corpos com deficiência. Quase falo corpos semelhantes ao meu, mas logo percebi que seria mentira, pois a deficiência tem corpos muito diversos e nem sempre parecidos com o meu, podem até ser mais semelhantes ao teu, a outros lá da Escola de Dança, aos corpos da Dança Contemporânea contorcidos e estranhos.

Ando bastante apreensivo com O Corpo Perturbador, com a quantidade de referências e informações que estão me chegando, com a necessidade de começar a fechar a torneira, sem querer  fechá-la, porque tudo é tão interessante e me parece tão impirtante. Os videos, as entrevistas, os contos, os pensamentos diversos, os sentimentos. O fazer escolha é o que mais me perturba (para ficar no contexto do blog), porque tenho certeza que deixarei coisas muito improtantes de fora. Essa escolha já é dança?

Está vendo, não respondi nada. Isso aqui, com certeza, não foi uma resposta,mas acordei pensando em você e na tua questão. Escrevi tentando falar comigo mesmo, refletindo sobre esse processo alucinado que é pensar/fazer esta dança. Você provocou a minha primeira confissão de perturbação. Coisa que procurei evitar esse tempo todo, porque acho que não preciso "palavrear" minhas perturbações, tudo que está aqui pertence a este universo interno inquieto e perturbado que sou eu. O que publiquei/escolhi dos outros pode não ser eu?
 
 
Publiquei este email láno blog também. Obrigado. Desculpe a demora.

Resposta



Wow, como é estranho receber uma resposta de uma carta que enviei a tanto tempo. Estranho, mas prazeiroso, hehe

Não me (falando por mim, com todas as idiossincrasias que tenho) interessam respostas, apesar de ter algumas. Acredito que hoje somos feitos de palavras. A partir do momento que criamos o vocábulo "eu"
criamos uma barreira com o mundo, dessa forma, tivemos que buscar estratégias para continuar uma troca com o mundo, interfaceada pela linguagem, como a dança. Faço a pergunta "Isso pode não ser dança?"
sem especificar que tipo de dança é por que esse vocábulo acaba sendo a raíz de tudo que diz respeito a dança, e problematizá-la, na verdade meu sonho é destruí-la, pois não vejo mais muito sentido utilizá-la hoje. Por constantes problematizações essa se alargou de tal forma que se auto consumiu, se entinguiu, assim como um elástico laceado. Ele ainda é um elástico, mesmo que não possa mais realizar sua função de elástico, que é se contrair e esticar. A dança foi esticada a tal ponto que rompeu suas fibras.

Quando digo "a dança" falo relacionado ao seu vocábulo, e não ao seu fazer. Acredito na dança enquanto linguagem com força suficiente pra se desligar da seara das palavras. Acredito que a dança está nos nossos corpos completos, em nossa voz, em nossas trocas com o outro.

Dançar é uma maneira de pensar sem palavras, de utilizar e desenvolver lógicas de pensamento sem palavras, ou até com elas, afinal, somos feitos de palavras né? hehe

Digo que ter respostas definidas não me interessam por que acho que a maior característica da dança é ser efêmera. Ao escrever uma definição do que é dança num papel ela perde seu sentido logo que a caneta sai
de cima da folha. Esse constante movimento dela é que a torna única e inapreensível. São momentos que nunca mais voltarão ! São momentos inapreensíveis, que existem e desaparecem. Que brotam e ao mesmo tempo morrem.Algo que deixa apenas lembranças (e quando lembramos, mudamos o passado. Nossas lembranças sempre existem no presente, e só nele podem existir)

Acredito que o corpo será, assim como Judite é, um excelente exemplo disso. Judite existe naquele momento dela. É fruto de seu momento, de sua casa, de seu chá, e principalmente de suas lembranças.Judite é uma
história sempre em curso. Ninguém é capaz de apreendê-la de fato. Ela simplesmente é. Quando vemos, nem seus rastros de lagarta ela deixou, só lembranças de uma lagarta que de certa forma também é um pedaço de
nós, afinal, nos conhecemos na experiência com o outro, e com Judite a coisa é sempre visceral, hehe

bjs Edu, muito obrigado pela resposta da carta. Não havia melhor momento de tê-la recebido do que hoje, pois ações como essas me fazem levantar após algumas porradas, hehe

Obrigado =]