segunda-feira, 28 de junho de 2010

Resposta da Carta - Verônica de Moraes

querido fernando,
(antes tarde do que nunca pra te escrever!)

Parênteses, lacunas e fragmentos, a escrita da dança é feita muito dessas representações e ainda bem, porque só se constrói um pensamento com muitos buracos, conflitos, instabilidades...

Um dos mitos da dança é a própria palavra coreografia, invenção pra colocá-la do lado da música e outras  artes/pensamentos, com a lógica de que uma coisa que passa a ser escrita, registrada, representada por meio de símbolos, tem mais valor do que outras que não o são... e assim, a dança pôde se tornar "erudita", junto à mentalidade emergente da europa do século XIV (um pedacinho da europa diga-se de passagem...)

O termo, como qualquer coisa posta no mundo, vem se modificando em  seus significados e apropriações... coreografia deixou de designar uma erudição na dança e passou a ser praticamente o seu sinônimo...

O que vem a ser dança contemporânea também muda sempre na sua condição de sobrevivência: a de questionar sempre o seu lugar no mundo. é por isso que os artistas reinventam os termo a cada instante: nova dança, outra dança, dança burra... e no lugar de dançarino/bailarino: pesquisador-intérprete-
criador, artista da dança, criador, intérprete, co-criador, idealizador, etc... e também: obra artística, instalação- coreográfica, dança-teatro, dança-performance, videodança, e outros hibridismos emergentes...

Esses termos-questionamentos sempre fez parte da dança desde o início do século passado [pelo menos numa história oficial, legitimada: ou seja, que exclui todas as danças populares, todos os movimentos populares, tudo que era fora das políticas dominantes (engraçado que até hoje é assim...)] e vêm se  atualizando de tempos em tempos, e de trás pra frente e de frente pra trás...

E sua questão acredito que faz parte dessa história também. O mais curioso e interessante é o jeito que cê faz isso, principalmente no que diz respeito aos suportes de mídia. Muito bom, parabéns pelo seu trabalho, com certeza ele tem legitimidade e dialoga com questões que sempre estiveram presentes no mundo da dança, das artes do corpo, do modo como o corpo se move no-com o mundo e o mundo se move com o corpo.

O que me incomoda, digamos assim, é às vezes um discurso que generaliza e mata qualquer possibilidade de reflexão. Se eu falo de um corpo genérico ou se falo do ser humano como uma entidade que se apresenta quase abstrata, na verdade não falo de nada... Se afirmo que tudo é complexo, que tudo é evolução, que  tudo é sistema, que tudo é híbrido, que tudo pode e não pode ser dança, na verdade não estou dizendo absolutamente na-da... a meu ver. E penso que, no meu entendimento (e tenho a modéstia de dizer que  realmente-realmente não entendo muita coisa do que é escrito sobre dança), grande parte dos textos que tentam construir uma teoria sobre a dança, cai nesse discurso: "tudo é complexo e a dança também, tudo é híbrido e a dança também, tudo é evolução e a dança também(...)" Esse tipo de afirmação, além de ser dogmática e doutrinária, no mesmo nível dos discursos religiosos, vira um discurso-simulacro, solto no espaço e sobretudo BELO, na sua retórica que só serve pra ser repetida, mas nunca objeto de reflexão...
é nessa lógica também, dentre outras coisas, acredito eu, que dançar significa, definitivamente, esse exercício de retórica especializada...os pesquisadores dançam quando falam e escrevem sobre dança, aliás, sobre corpo, sobre corpo e semiótica, sobre corpo e evolução, etc. E a fala desses especialistas são, sem sombra de dúvidas, verdadeiros espetáculos.
 
Seguindo a mesma lógica do surgimento do termo coreografia, os discursos são criados pra elevar a dança no patamar erudito e acadêmico, dentro de todas as relações de poder que isso implica... É uma construção, uma criação. É dança! (...) (?)

Não faço propriamente uma crítica aqui, porque bebo diretamente dessa fonte inesgotável de imaginação, de criar vocabulários e realidades pra dança existir, pra que a gente possa falar dela de um ou de outro
ponto de vista. Não generalizar, por outro lado, não significa negar que a dança possa dialogar com o evolucionismo, com a teoria dos sistemas, etc; a alternativa não pode ser "a dança não pode ser tudo;
a dança é isso e não aquilo; a dança é um monte de movimento executados por um corpo no espaço-tempo".
 
De jeito nenhum... mas, acredito que os mais novos discursos sobre dança, e que, muito contraditoriamente, são os mais coerentes, só podem existir no mundo pela repetição dos mesmos. Infelizmente, esses discursos foram feitos para serem repetidos sem reflexão nenhuma... Como resolver esse impasse?
 
Acredito que o melhor que temos a fazer é tentar descobrir o que pra nós é importante. Parece óbvio, mas não é. Nos apropriarmos dos discursos em voga também é importante, o trabalho de antropofagia é
sempre mais saudável do que o da negação. Negação pressupõe sempre isolamento na altura do campeonato (todo o discurso que nega e questiona hoje em dia é taxado de obsoleto...e isso dificulta muito os diálogos, apesar de ter um lado positivo também...)

Ou seja, é na contradição mesmo que temos que fazer nossas perguntas, serpenteando com passos leves pelos fundamentalismos que em nossa época estão sendo legitimados a cada dia...

Avante!

Concluindo: suas perguntas podem fazer esse tipo de papel: deglutir o imperativo e transforma-lo em algo singular que possa trazer outras e mais perguntas... porque sabemos: o importante não é responder o tipo
de perguntas que você faz, mas constatar que elas ainda fazem sentido no nosso tempo-espaço, e com  certeza fazem!

Abaixo te deixo um poeminha que fiz há muitos anos atrás. Tenho um livrinho, o "histórias de corpo", e este faz parte do objeto ainda não publicável... (se não está no mundo, pode não ser dança?). Te escrevo esse 'poeminha' porque o escrevi num tempo que me incomodava ver que ainda a maioria dos nossos colegas encaram dança como sendo passos executados com eficiência no tempo e no espaço, por corpos atléticos e
sem cabeça...
 
Obrigada pelo espaço de um pouco de diálogo
e parabéns mais uma vez
grande beijo
veronica.

"DANCE OF xxxxxxxxx" (parte do título fora auto-censurado)

os bailarinos foram mortos
enrolados no próprio umbigo
o corpo agora é um pote vazio
pronto pra receber algumas migalhas

é um sapo aberto vivo na mesa do laboratório
(a cabeça pende pro lado e os olhos de vidro têm a função de imitar
todo o tipo de movimento à sua volta)

os bailarinos estão mortos
mas infelizmente ainda continuam dançando
na frente do espelho
imitam o movimento
se olham imitando o movimento
imitam o movimento da própria imagem

as bailarinas são tristes e risonhas
desaparecem por trás dos pavões histéricos
quando não tentam imitá-los

bonecos de papel congelados
mexem mexem sem parar e o quanto podem
(o quanto for preciso)
no sete-oito da cadência na volúpia em si mesmo
numa eficiência de dar dó

dispersos e alheios à tudo e todos
(exceto a obcecação por imitar)
nas ruas enfim,
são cidadãos comuns
loucos por óculos CHILLIBEANS."

Sumi mas não morri

E ainda estou no aguardo da resposta da FUNCEB